O transplante autólogo de células-tronco hematopoiéticas (AHSCT), indicado para casos graves de esclerose sistêmica (ES), reconstitui completamente o sistema imunológico e restaura a capacidade supressora dos linfócitos “B”, células de defesa do organismo. A avaliação é baseada em dados clínicos e imunológicos de 22 pacientes transplantados no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (HCFMRP) da USP. Os resultados contribuem para o entendimento da ES e a remissão da doença, a longo prazo. Do ponto de vista clínico, houve melhora nas funções pulmonares, nos movimentos articulares e diminuição do enrijecimento cutâneo provocado pelo excesso de produção de colágeno.
“O transplante autólogo de células-tronco hematopoiéticas [aquelas que têm a capacidade de se autorrenovar] consiste na coleta de células-tronco do próprio paciente e infundidas [devolvidas] nele após a administração de altas doses de quimioterapia e é recomendado apenas para pacientes que não respondem mais ao tratamento convencional com imunossupressores, porque além de ser de alto custo é muito invasivo”, explica ao Jornal da USP a médica reumatologista Maria Carolina de Oliveira Rodrigues, pesquisadora do Centro de Terapia Celular (CTC) e professora da Divisão de Imunologia Clínica, do Departamento de Clínica Médica da FMRP.
“O procedimento, além de promover renovação celular dos linfócitos ‘T’, que já era de conhecimento científico de pesquisadores da equipe, restaurou profundamente a capacidade dos linfócitos ‘B’ ”, relata Maria Carolina.
O que é esclerose sistêmica?
Segundo a pesquisadora, a esclerose sistêmica (ES) é uma doença autoimune, sem causa conhecida e caracterizada por alterações vasculares e fibrose cutânea e visceral progressiva, que envolvem pulmões, intestino, coração e rins. A patologia, que se manifesta principalmente em mulheres entre os 30 e 50 anos, provoca produção exagerada de colágeno que leva a mudanças na textura e na aparência da pele, que fica enrijecida. À medida que a doença vai evoluindo, outros órgãos são afetados e surgem dores articulares, dificuldades para andar, comer, falar e falta de ar, chegando ao óbito.
O assunto foi descrito no artigo Autologous hematopoietic stem cell transplantation restores the suppressive capacity of regulatory B cells in systemic sclerosis patients Autologous hematopoietic stem cell transplantation restores the suppressive capacity of regulatory B cells in systemic sclerosis patients, publicado pelo Rheumatology, periódico oficial da British Society for Rheumatology da Oxford University Press, em março de 2021.
“Havia especulações de que o transplante pudesse ser uma imunossupressão mais forte e que duraria por mais tempo, mas o que foi verificado nessa pesquisa foi mais do que isso. O transplante alterou o sistema imunológico de uma maneira tão profunda, renovando tanto as células ‘T’ quanto as ‘B’ , que conseguiu ‘resetar’ o sistema imune como se o paciente voltasse a ser um bebê”, explica a reumatologista.
O transplante AHSCT não é novidade como tratamento alternativo para pacientes com esclerose sistêmica grave e progressiva, conta a pesquisadora. O procedimento tem sido realizado no HCFMRP desde 2004, com respostas clínicas muito boas, relata a médica. “Porém, havia uma lacuna que precisava ser investigada, que era saber quais eram os mecanismos imunológicos que estavam envolvidos nessa resposta terapêutica de transplante”, diz.
“Havia especulações de que o transplante pudesse ser uma imunossupressão mais forte e que duraria por mais tempo, mas o que foi verificado nessa pesquisa foi mais do que isso. O transplante alterou o sistema imunológico de uma maneira tão profunda, renovando tanto as células ‘T’ quanto as ‘B’ , que conseguiu ‘resetar’ o sistema imune como se o paciente voltasse a ser um bebê”, explica a reumatologista.
Comparação de resultados imunológicos e clínicos dos pacientes
A pesquisa que demonstrou renovação celular dos linfócitos “B” associada a desfechos clínicos favoráveis é de autoria do pesquisador João Rodrigues Lima Junior (primeiro autor do artigo e co-orientando de doutorado da professora Maria Carolina), que atualmente está fazendo pós-doc em La Jolla Institute for Immunology, Center for Autoimmunity and Inflammation, nos Estados Unidos. A parte laboratorial esteve sob orientação da professora Kelen Cristina Ribeiro Malmegrim de Farias, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCFRP) da USP, e a coordenação das avaliações clínicas esteve sob responsabilidade da professora Maria Carolina.
Os pacientes foram monitorados antes do transplante e após o procedimento (30, 60, 120, 180 e 360 dias) para avaliar a resposta clínica (espessamento da pele, função pulmonar, cardíaca, renal e trato gastrointestinal), e retirada de sangue para quantificação e identificação de linfócitos (células) B e T e anticorpos.
Mais anos de vida
A professora Maria Carolina conta que, de uma forma em geral, os pacientes que apresentaram uma melhor renovação dos linfócitos “B” foram exatamente os que também tiveram melhor resposta clínica e menos marcadores de inflamação sanguínea. A médica, que há mais de dez anos vem acompanhando pacientes transplantados no HC, diz que, após o procedimento, eles passaram a ter a doença mais bem controlada e ganharam mais tempo e melhora de qualidade de vida.
“Oito anos após o transplante, por exemplo, 81% dos pacientes encontravam-se vivos e 70,5%, com a doença controlada”, relata. Houve melhora também na função pulmonar, no espessamento da pele e nos movimentos articulares das mãos, braços e pernas, de modo que eles passaram a andar distâncias maiores, diz a médica. Os resultados da parte clínica foram descritos no artigo Hematopoietc stem cell transplantation for systemic sclerosis: Brazilian experience .
Restauração dos linfócitos “B”
Do ponto de vista imunológico, “o que a pesquisa comprovou foi que o transplante restaurou a capacidade dos linfócitos ‘B’ que, em circunstâncias saudáveis, cumpre papel importante no sistema imunológico, diz a pesquisadora. Sua principal função é a produção de anticorpos contra antígenos, mas que, por algum motivo, quando a pessoa é afetada por doenças autoimunes, como a esclerose sistêmica, as células ‘B’ se transformam em ‘células do mal’ e começam a agredir os tecidos e os órgãos dos pacientes. Com o transplante, renovam-se essas células, que voltam a funcionar normalmente”, explica.
Segundo a pesquisadora, ao saber como o transplante atua de fato no sistema imunológico dos pacientes, em breve será possível usar os linfócitos “B” como marcadores para avaliar a evolução da doença e também utilizar fármacos direcionados na hora do transplante para que os pacientes tenham desfechos melhores.
Fonte: Jornal da USP