Tecnologia ajuda o pequeno David a descobrir os sons, no hospital da USP

Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais é o primeiro no País a oferecer aparelho auditivo de alta tecnologia para os dois ouvidos na rede pública.

Assim como o Davi do Velho Testamento – que enfrentou o guerreiro Golias, o pequeno David Gabriel Vicente de Souza, de apenas dois anos, também já derrotou “gigantes”. Depois de lutar pela vida em seus primeiros meses, a mais nova batalha vencida foi ouvir. Ele nasceu com perda auditiva severa decorrente de malformações nos dois ouvidos e, no dia 16 de outubro, esteve no Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais (HRAC) da USP para receber uma tecnologia que permite a bebês e crianças ouvirem melhor, já que ainda não podem passar por cirurgia para prótese auditiva implantável.

É difícil não se emocionar com a alegria de David e a de sua mãe no momento em que, pela primeira vez, ele começa a desbravar o mundo dos sons. “O David Gabriel praticamente não escutava, não reagia quando o chamávamos. E, quando era um barulho muito alto, ele ficava perdido, não sabia de onde vinha o som. Vê-lo ouvindo bem, dançando e se alegrando com música, é um alívio e uma felicidade muito grandes. Agora, estamos na expectativa dele desenvolver melhor a fala”, comemora a mãe, Rosangela Borges, 32, dona de casa.

O HRAC fica em Bauru, no interior de São Paulo. Ele é o primeiro serviço no Brasil a oferecer, pela rede pública, a chamada banda elástica (softband) com processadores de áudio para os dois ouvidos, segundo a fonoaudióloga Tyuana Sandim Silveira Sassi, chefe técnica da Divisão de Saúde Auditiva da instituição.

Ela explica que a reabilitação de pessoas com deficiência auditiva é realizada rotineiramente por meio da adaptação de aparelhos de amplificação sonora individual (AASI). Entretanto, em pacientes com deficiência auditiva decorrente de malformações de orelha, a adaptação dos dispositivos é inviável.

“Como alternativa terapêutica para esses indivíduos no Sistema Único de Saúde (SUS), havia a oferta do AASI acoplado a um vibrador ósseo inserido em um arco para o paciente ouvir por meio da condução óssea, mas que, geralmente, causava desconforto devido à pressão necessária para a transmissão do som”, conta a fonoaudióloga.

Atualmente, o hospital possui as próteses auditivas ancoradas no osso, mas a profissional do HRAC destaca que, em crianças menores de cinco anos, ainda não é possível realizar a cirurgia para implantação dessas próteses. “Conforme critério estabelecido em Portaria do Ministério da Saúde, é indicada a adaptação do processador de áudio posicionado por meio da banda elástica, a qual permite estimulação auditiva por via óssea sem causar desconforto.”

Além de David, outra criança também recebeu a tecnologia no HRAC em outubro. De acordo com a fonoaudióloga, os resultados foram bem satisfatórios. “Os pacientes apresentaram localização e compreensão da fala bilateralmente, assim como a percepção da mudança de melodia e entonação na presença da fala cantada.”

“Como hospital de ensino da USP, buscamos sempre desenvolver e oferecer os melhores tratamentos, tecnologias e inovações em nossa rotina assistencial. Esta é uma marca do HRAC. É uma satisfação indescritível ver a ciência, a expertise de profissionais altamente qualificados e também as políticas públicas e esforços de gestão beneficiando diretamente a saúde e qualidade de vida dos nossos pacientes”, assinala o professor Carlos Ferreira dos Santos, superintendente do HRAC e diretor da Faculdade de Odontologia de Bauru (FOB) da USP.

O professor Luiz Fernando Manzoni Lourençone, diretor clínico do HRAC e professor do curso de Medicina da FOB, ressalta a importância da reabilitação integral dos pacientes. “O HRAC-USP sempre priorizou um tratamento completo e, felizmente, temos conseguido avançar nas diversas frentes necessárias para a reabilitação global de crianças e adultos com tantas e diferentes necessidades, tanto nos aspectos estéticos quanto funcionais, como alimentação, respiração, audição e fala.”

Muito além da audição

Ouvir foi a vitória mais recente de David, no entanto, ele já travou inúmeros outros combates, inclusive pela vida. O pequeno nasceu com alterações nos braços e pernas. A chamada síndrome de Treacher Collins e sequência de Pierre Robin são condições que podem apresentar comprometimento dos ossos da face, mandíbula pequena, orelhas malformadas ou ausentes, olhos inclinados, fissura no palato (céu da boca), micrognatia (queixo pequeno) e glossoptose (queda da língua para trás).

“Essas malformações craniofaciais comprometem, além da estética, funções vitais como a respiração e a alimentação, que, se não tratadas no momento e de maneira adequada, podem trazer consequências graves aos pacientes”, explica o cirurgião craniofacial Cristiano Tonello, chefe técnico do Departamento Hospitalar do HRAC e professor do curso de Medicina da FOB.

A notícia da malformação impactou a família de David, que chegou a ouvir de alguns médicos que, se ele sobrevivesse, não iria andar nem falar. Assim que David nasceu na maternidade, a mãe e o pai, Sidnei Vicente de Souza, 28, músico, conseguiram vê-lo por alguns segundos. Ele já seguiu para a UTI de um outro hospital infantil e o reencontro com a mãe foi apenas três dias depois, após ela se recuperar de complicações do parto. Com 26 dias, o bebê foi transferido para a UTI pediátrica do hospital da USP, em Bauru, considerado centro de excelência nacional e internacional em suas áreas de atuação.

“Recebemos o David Gabriel transferido com indicação de traqueostomia (abertura cirúrgica no pescoço para permitir a respiração] e gastrostomia [abertura na região do estômago para fixação de sonda alimentar), em função de grave micrognatia e desconforto respiratório. Ao invés disso, fizemos uma distração mandibular com 40 dias de vida. Realizamos planejamento virtual da cirurgia e impressão 3D de guias cirúrgicos customizados. Obtivemos avanço de 17 milímetros da mandíbula, com ganho de peso e melhora completa do desconforto respiratório da criança”, detalha o cirurgião Cristiano Tonello. 

Os procedimentos também contaram com a colaboração dos professores Fernando Melhem Elias, da disciplina de Cirurgia Bucomaxilofacial da Faculdade de Odontologia da USP, em São Paulo, e Nivaldo Alonso, chefe técnico da Seção de Cirurgia Craniofacial do HRAC e professor da disciplina de Cirurgia Plástica da Faculdade de Medicina da USP, em São Paulo.

Rosângela relembra que só retornou para casa com o filho quando ele estava perto de completar seus três meses de vida. “Ele ainda usou o distrator (aparelho mecânico para o alongamento da mandíbula) até os cinco meses e sonda nasogástrica para alimentação até os oito meses”, relata Rosangela, que vive em Joinville, interior de Santa Catarina, com o marido e suas outras duas filhas, Mayara Caroline Borges, 15, e Larissa Ivanir Mauli, 9.

“Sei que estamos só no começo, temos um longo caminho a seguir ainda, mas a vida do David Gabriel se transformou completamente. Ele tinha dificuldade para respirar, se alimentar, escutar e, hoje, é outra criança, que procura se virar, como qualquer outra. Ele quer sentar na mesa para comer com a gente, sozinho. Ele anda, brinca. Quando o pai se apresenta, ele quer subir no palco, pegar o microfone, fazer aquela bagunça. Só tenho a agradecer ao doutor Tonello e à toda a equipe do Centrinho por salvar a vida do meu filho”, destaca Rosângela.

Fonte: Jornal da USP

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