Racismo estrutural limita o acesso da população negra aos serviços de saúde

Texto retirado de: Jornal da USP

Escrito por: Raquel Tiemi

A garantia do direito à saúde, presente na Declaração Universal dos Direitos Humanos proclamada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948, é uma temática que entrelaça uma série de esforços. No cenário brasileiro, o processo de conquista desse direito perpassa um conjunto de episódios, desde a Revolta da Vacina após o surto de varíola até a Assembleia Constituinte de 1988, que assegurou a promoção da saúde como direito de todos e dever do Estado. No entanto, mesmo com anos de progresso, esse acesso ainda sofre imensas dificuldades em sua aplicação prática. 

De acordo com os novos dados divulgados pelo Centro de Estudos e Dados sobre Desigualdades Raciais (Cedra) há uma grande discrepância entre negros e brancos na utilização dos serviços de saúde. O levantamento aponta que 29% da população negra no Brasil nunca foi ao dentista ou não consulta um profissional há mais de três anos. Outro dado que também chama a atenção trata do alcance do “exame da orelhinha” ou Triagem Auditiva Neonatal – importante para detectar possíveis problemas de audição nos recém-nascidos – nas crianças negras menores de dois anos. Cerca de 24,2% não fizeram o exame em contraponto aos 12% de crianças brancas. 

Diante desse cenário, é possível notar um reflexo do racismo enraizado até mesmo no acesso a estruturas que deveriam ser universais, como os serviços de saúde. Marília Louvison, professora do Departamento de Política, Gestão e Saúde da Faculdade de Saúde Pública da USP, comenta que a manutenção de uma saúde bucal consiste em um indicador importante de iniquidades e que se coloca na população negra com um grau de exclusão muito grande. “As desigualdades nem sempre se apresentam nas diferenças de acesso à saúde, mas também na dificuldade em utilizar e no sofrimento produzido por esses serviços”, completa a professora. 

Territorialidade 

Em aspectos práticos, Mônica Mendes Gonçalves, pesquisadora da Faculdade de Saúde Pública da USP, destaca a territorialidade como um dos principais desafios para o acesso da população negra à saúde. A dinâmica do capital e da raça favorece um processo de organização da cidade entre centros e periferias, com a população branca mais centralizada e a negra aglomerada nas periferias. Essa territorialidade possui impacto crucial no acesso ao direito essencial e na própria promoção do bem-estar da população. 

“Pessoas que estão em regiões em que há piores condições de vida, mais violência e menos saneamento básico, são populações concentradas em regiões mais vulneráveis”, avalia a pesquisadora. O segundo aspecto dessa dimensão é a distância geográfica como desafio do acesso ao serviço, além deste ser mais precário, com uma rotatividade maior de profissionais. Com isso, uma barreira territorial é construída dificultando o acesso à saúde não só das populações negras, como também das periféricas. 

Racismo estrutural

O diagnóstico traçado pelos diversos levantamentos realizados pelo Cedra vai ao encontro do racismo onipresente nas relações sociais do País. Na visão de Mônica Mendes Gonçalves, o racismo representa um duplo papel, tanto de causa da desigualdade quanto de evidência dessa situação. Para entender melhor a complexidade da problemática, Mônica se utiliza do conceito de “corporificação”, uma das formas possíveis de entender a saúde na sociedade, que se relaciona principalmente com a ideia de determinismo social do processo de saúde-doença. 

“Associa-se justamente com o modo como as relações sociais, conjunto das nossas condições objetivas de vida, vão se transcrever no nosso corpo, conformando uma certa saúde ou uma certa condição de doença”, explica a pesquisadora. Assim, há um entendimento da saúde não como simples resposta biológica do corpo, mas, sobretudo, uma manifestação física resultante do conjunto das condições de vida de cada pessoa ou de cada grupo, muitas vezes influenciadas por fatores como racismo e machismo, por exemplo. 

Essa ideia vincula-se diretamente com a própria organização do sistema de saúde brasileiro, na medida em que se entende o direito ao bem-estar como fruto de uma disputa política e um dever do Estado. Para além dos aspectos intrínsecos à saúde, como a territorialidade e a descriminação recorrente nos atendimentos, a pesquisadora ressalta a importância da análise dos indicadores macroestruturais. “O racismo articula um conjunto de condições de vidas precárias em diversos setores da sociedade ou diversas dimensões da vida, o que vai fazendo com que essas populações negras adoeçam”, analisa Mônica. 

Legalidade X Realidade 

A garantia de direitos fundamentais – saúde,  água, saneamento básico, segurança – compõe diretamente o exercício pleno da cidadania. Assim, segundo a professora Marília, estes devem ser assegurados pelo Estado de forma a priorizar a equidade dos direitos dos cidadãos, especialmente quando há uma parcela específica excluída do processo. 

“A inacessibilidade da população negra à saúde tem a ver justamente com o fato da nossa democracia ser marcada pela exclusão racial”, comenta Mônica. Dessa forma, evidencia-se também a construção dos marcos democráticos e aparelhos de proteção e seguridade social a partir de uma lógica institucional em que regularmente as populações negras estariam asseguradas no acesso ao direito à saúde, mas que, na prática, não ocorre. 

A desigualdade no acesso e disponibilidade não apenas impacta, portanto, o exercício da cidadania em um Estado de Direito, como demonstra que a democracia instaurada no Brasil é um regime racializado. “A democracia opera para um grupo racial: os brancos. Se o acesso não é universal, a dignidade não é universal, o exercício da cidadania é uma expressão de que a cidadania não é plena e não é vigente na nossa sociedade brasileira”, considera a pesquisadora Mônica. 

Referências

TIEMI, Raquel. Racismo estrutural limita o acesso da população negra aos serviços de saúde. Jornal da USP, 2023.

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