Pesquisa possibilita experiências estéticas a pessoas cegas diante de obras de arte

Pesquisa da USP aponta possibilidades de criação e experimentação de deficientes visuais em exposições artísticas

Retirado do: Jornal da USP

Escrito por: Redação Jornal USP – Com informações de Everton da Cruz, do LAC-Laboratório Agência de Comunicação da ECA USP. Editado por Antonio Carlos Quinto.

Foi a partir de experiências junto a pessoas com deficiência, instituições culturais e equipes educativas que a artista visual e fotógrafa Karen Montija, que também é educadora e especialista em acessibilidade cultural, desenvolveu sua pesquisa de mestrado intitulada Picasso Pinta Feio: Proposta de acessibilidade à experiência estética com a arte por meio da mediação com pessoas cegas e com baixa visão em espaços culturais. A dissertação foi apresentada no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e teve a orientação da professora Maria Christina Rizzi. O estudo teve como principal objetivo promover a integração e participação de pessoas cegas e de baixa visão em exposições de arte.

O estudo de Karen se dá em torno da criação e aplicação do que ela chamou de “Proposta de Acessibilidade e Experiência Estética (PAEE)” de exposições artísticas para deficientes visuais. A criação de uma experiência estética em artes visuais é, conforme o nome indica, pensada sobretudo para o público vidente, com espaço muito reduzido para outros sentidos. “Por conta disso, as ações educativas para pessoas cegas em exposições de arte, tradicionalmente, acabam sobrepondo a informação à experiência estética”, conta a educadora. “A informação e a experiência estética não são rivais, elas têm que caminhar juntas, e não apenas uma ou a outra.”

O problema está em como proporcionar uma experiência estética a partir de uma obra que o visitante não consegue ver, ou seja, como fazer a obra de arte ser sentida. Para isso, a PAEE propõe que sejam criadas novas formas de apresentar a obra. Ao invés de tentar fazer uma representação fiel da obra, são criadas possibilidades que exploram outros sentidos e perspectivas, como um enfoque histórico ou nas cores, por exemplo.

“Um pé… Um navio”

Para melhor exemplificar a proposta de sua pesquisa, Karen propõe que imaginemos uma foto de “um pé sobre um navio”. Um visitante da galeria poderá ouvir a descrição da foto, ou até mesmo, em alguns casos, ter uma representação que possibilite o toque por meio de uma prancha tátil, em alto relevo, que represente a imagem. Para a pesquisadora, o método por si só não é o suficiente. “A proposta de nosso estudo visa, por exemplo, a que seja construída uma maquete de um navio e que o visitante deficiente visual possa tirar seu calçado e, de fato, pisar no navio”, descreve a artista. Um dos princípios da PAEE é justamente propor à pessoa cega uma experiência estética, que na definição da educadora é “aquilo que nos toca (…) que nos atravessa, que nos faz sentir e estética seria a qualidade dessa experiência, se ela é feliz, triste, aterrorizante e por aí vai”.

“Fazer alguma coisa que permita com que a pessoa cega ou de baixa visão tenha uma experiência com artes visuais já é uma criação (…) O que se propõe é que não se imite, mas sim que se amplie a maneira de representar a obra”, explica a pesquisadora, destacando a importância de considerar o repertório, os interesses, as referências e as formas de experimentar e interagir com o mundo de cada pessoa com deficiência visual que poderá ter contato com a obra de arte, o que abre margem para novas criações.

“As pessoas com deficiência visual, muitas vezes, são impedidas de viver essa experiência estética, porque a maioria dos recursos disponibilizados são para suprir a falta do que ela não vê e não proporciona uma experiência estética.” – Karen Montija

Das experiências pessoais

A pesquisa de Karen é motivada por algumas experiências pessoais. Uma delas, sobretudo, da relação com seu pai, Claudio Montija, que gradativamente foi perdendo a visão em decorrência da catarata, assim como pela sua atuação profissional em espaços culturais e em sala de aula.

Em sua passagem pelo Centro Cultural do Banco do Brasil (CCBB) no Rio de Janeiro, Karen teve a oportunidade de trabalhar com a educadora cega Camila Alves e a monitorar exposições para pessoas cegas e de baixa visão. Logo em sua primeira monitoria para uma pessoa cega, ela conta que sentiu que sua forma de explicar as obras não funcionaram bem. O visitante expressou sinais de cansaço, o que a fez suspeitar que ela estivesse usando informações em excesso. Quando pensa nessa época, Karen acredita que tentava suprir a falta da visão, ao invés de se concentrar nas outras potencialidades que uma pessoa cega possui.

Em sala de aula, a pesquisadora fala sobre sua experiência com Guilherme, um aluno cego do ensino médio. Irônico, doce e bem humorado, ele parecia lidar bem com a falta de visão, lembra Karen. Dessa experiência, ficou marcada uma aula que preparou sobre o Egito antigo, em que produziu uma extensa apresentação de slides com imagens que, ao final, colocou boa parte da classe para dormir, inclusive Guilherme. Em outra oportunidade, ela recorda de aplicar uma avaliação da turma: enquanto ele fez uma prova de argila, o restante da turma realizou uma avaliação convencional. Ver Guilherme isolado da turma por conta de sua deficiência visual durante a prova gerou grande incômodo na educadora.

E foi dessas primeiras experiências, e ao longo de dez anos como educadora de propostas acessíveis, que Karen acumulou muitas questões sobre como desenvolver experiências estéticas e educativas que fossem bem recebidas por pessoas cegas e de baixa visão e a trouxeram ao mestrado na ECA.

“Fazer COM e não fazer PARA”: desenvolvimento e aplicação da proposta

Para que a PAEE fosse criada, foi preciso envolver pessoas com deficiência visual e outros profissionais. Karen destaca a contribuição de Camila Alves, que fez apontamentos para a proposta. “Eu acho que a grande história é você fazer o trabalho com pessoas com deficiência e não para elas (…) Você acaba descobrindo, inclusive, outras percepções sobre a obra”, conta Karen.

A expectativa de Karen é que qualquer pessoa que entre em contato com a PAEE tenha a possibilidade de aplicar, no seu local de trabalho, propostas educativas de acessibilidade. Ao criar novas formas de percepção das obras de arte, é possível integrar as pessoas com deficiência visual a outros públicos que visitam a mesma exposição. Para isso, a perspectiva de diversas áreas e de profissionais e pessoas com deficiência é fundamental: “Foi por meio de olhares plurais que as mais variadas formas de diálogo foram possíveis na PAEE”, acredita Karen.

O primeiro artista a ser mediado por meio da PAEE foi Pablo Picasso, com a pintura El pintor y la modelo e outras obras. O foco foi fazer um trabalho acessível em conjunto com pessoas cegas, em que foram criadas obras que buscassem alcançar a expressividade da obra original ao invés de fazer uma representação fiel dela. A ideia era que a pessoa cega experimentasse a desfiguração humana no próprio corpo, a partir de materiais como espuma e tecidos, com pesos e tamanhos diferentes, que dificultavam a movimentação. Foram adicionadas cores às peças, pensando nas pessoas de baixa visão e videntes.

“O nome da minha dissertação é Picasso Pinta Feio porque uma visitante cega disse que Picasso pintava muito feio, depois de utilizar um dos recursos que a gente tinha criado, que não era uma placa tátil, mas adereços que as pessoas vestiam e sentiam no próprio corpo a desfiguração humana que Picasso pintava”Karen Montija

Atualmente, a PAEE está sendo aplicada no Instituto Gustavo Rosa, no Sesc São Paulo e no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo. A dissertação também irá se tornar livro: encorajada pela banca, a pesquisadora enviou o trabalho para algumas editoras e, ainda neste primeiro semestre de 2024, terá sua obra publicada pela Editora Appris.

Para Karen, é importante que o trabalho realizado durante o seu mestrado não se restrinja a debates direcionados ao ambiente acadêmico. “O que me motivou a fazê-la [a dissertação] foi porque ela é o relato de um trabalho prático que foi realizado, que ainda acontece (…) O que eu quero dizer, é que ela não fica só no mundo da teoria, ela acontece na prática, é da prática que a gente tira nossas conclusões”, reflete e avalia a educadora.

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