O autismo foi, durante muito tempo, associado somente a fatores comportamentais e ambientais, mas está cada vez mais evidente o papel da genética no desenvolvimento do quadro. Cerca de 100 genes já foram confirmados como associados ao transtorno e outros mil são estudados no momento com a mesma finalidade.
Tamanha variabilidade dificulta diagnosticar ou mesmo tratar a doença com base no estudo do genoma. Uma nova pesquisa conduzida no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP) mostra que, independentemente das mutações que cada indivíduo com autismo carrega no DNA, existe um perfil comum na expressão de certos genes.
“Encontramos um grupo de genes que está desregulado tanto nas células progenitoras neurais, que darão origem aos neurônios, quanto nos neurônios em si”, conta Maria Rita Passos-Bueno, professora do IB-USP vinculada ao Centro de Pesquisa sobre o Genoma Humano e Células-Tronco (CEGH-CEL) – um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) financiado pela FAPESP na USP.
Em outras palavras: mesmo que o DNA dos indivíduos com autismo apresente alterações diferentes, o comportamento desses genes é semelhante nesse grupo de pacientes – e diferente do encontrado no cérebro de pessoas sem o transtorno. A pesquisa teve apoio da FAPESP e seus resultados foram publicados no periódico Molecular Psychiatry, do grupo Nature.
Experimentos
Como não é possível obter amostras de tecido cerebral de indivíduos vivos, os pesquisadores modelaram as células in vitro, por meio de um processo chamado de reprogramação celular.
“Extraímos células da polpa do dente de indivíduos com e sem autismo e, a partir delas, criamos células-tronco pluripotentes, que podem ser transformadas em qualquer tipo celular. Dessa forma, conseguimos criar em laboratório células neuronais contendo o mesmo genoma dos pacientes”, explica Karina Griesi Oliveira, pesquisadora do Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Albert Einstein e doutora em Genética pelo IB-USP, primeira autora do trabalho.
Para esse estudo, os pesquisadores selecionaram seis indivíduos com autismo acompanhados no IB-USP, sendo cinco altamente funcionais e um com baixa funcionalidade, com perfis genéticos heterogêneos. Para o grupo controle, foram selecionados seis indivíduos saudáveis.
“A hipótese demonstrada é que, embora a origem do autismo seja multifatorial e diferente em cada pessoa, essas alterações podem levar aos mesmos problemas no funcionamento dos neurônios”, explica Oliveira.
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Com as células-tronco pluripotentes induzidas (iPSC, na sigla em inglês) dos pacientes e dos controles prontas, o grupo as reprogramou para simular duas etapas do desenvolvimento do cérebro humano: as células progenitoras neuronais e neurônios em um estágio equivalente ao de fetos entre a 16ª e a 20ª semana gestacional.
O grupo analisou então o transcriptoma – conjunto de moléculas de RNA expresso pelos genes – dessas células. O RNA é uma molécula intermediária, responsável por transmitir a informação contida em um gene e transformá-la em proteínas, que ditarão o comportamento das células.
“Ao contabilizar as moléculas do RNA conseguimos saber exatamente como esses genes estão se expressando”, explica Oliveira.
Depois de realizar um sequenciamento de RNA para obter o transcriptoma, as pesquisadoras usaram modelos matemáticos para identificar nos dois grupos (com e sem autismo) quais genes estavam diferencialmente expressos e chegaram a grupos responsáveis pela sinapse e pela liberação de neurotransmissores – isto é, genes capazes de modular a comunicação entre neurônios, processo que influencia o funcionamento de todo o corpo, principalmente do cérebro.
Tal conjunto de genes (alguns já relacionados ao autismo em estudos anteriores) apresentava atividade aumentada nos neurônios. “Alguns deles também estavam desregulados em células neuronais derivadas de iPSC de autistas estudadas em outros trabalhos e também nos neurônios retirados, após a morte, do cérebro de indivíduos com autismo, o que valida o método”, conta Passos-Bueno.
Essa segunda análise, realizada a partir de bancos de tecidos coletados post-mortem, mostrou, por outro lado, que a expressão desses genes estava diminuída quando os indivíduos faleceram. “Não sabemos o porquê dessa diferença, mas ela é uma evidência consistente de que a expressão desse grupo de genes está envolvida no transtorno”, diz Oliveira.
Relevância clínica
O estudo sugere a existência de um problema no neurodesenvolvimento do embrião que altera o funcionamento dos neurônios. “A criança já nasce com a expressão gênica alterada”, afirma Passos-Bueno.
Esse conhecimento poderá ser útil para o diagnóstico do autismo, hoje baseado na análise clínica dos sintomas. Não há exames de imagem, sangue ou genéticos que ajudem a diagnosticar o transtorno na grande maioria dos casos suspeitos. “Em cerca de 30% dos pacientes, um erro genético principal provoca o autismo, mas em 70% o quadro é multifatorial, ou seja, um conjunto de alterações no DNA causa os sintomas clínicos, o que torna ainda mais difícil a interpretação do dado genético”, explica Passos-Bueno.
Essa linha de estudo também pode favorecer o desenvolvimento de terapias mais efetivas. “Para tratar uma doença genética é preciso entender o que os genes estão fazendo de errado. E essas alterações no comando dos neurotransmissores ainda não tinham sido demonstradas de maneira tão bem delineada”, destaca Mayana Zatz, professora do IB-USP e coordenadora do CEGH-CEL.
Segundo a pesquisadora, o CEPID está na vanguarda das pesquisas internacionais sobre autismo. Um dos avanços recentes do grupo foi a identificação de novos genes ligados ao transtorno, entre eles o PRPF8. O estudo foi publicado em fevereiro deste ano na revista Autism Research.
“Isso só foi possível graças ao trabalho que tem sido feito há duas décadas com mais de mil famílias de autistas”, conta Zatz. O IB-USP oferece aconselhamento genético para familiares e portadores de autismo e centenas de outros transtornos genéticos.
O artigo Transcriptome of iPSC-derived neuronal cells reveals a module of co-expressed genes consistently associated with autism spectrum disorder pode ser lido em www.nature.com/articles/s41380-020-0669-9.
Este texto foi originalmente publicado por Agência FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.