Mulheres infectadas por Zika na gestação têm risco aumentado de ter filhos com TEA

Retirado do: Jornal da USP

Escrito Por: Fabiana Mariz

Transtorno do espectro autista (TEA) é multifatorial, envolvendo também aspectos genéticos, e ainda é muito difícil fazer correlações causais com aspectos ambientais. Mas os estudos começam a levantar potenciais fatores de risco

A infecção pelo vírus da zika na gestação pode aumentar as chances de desenvolvimento do Transtorno do Espectro Autista (TEA) em bebês. A informação está descrita em um artigo publicado no dia 24 de fevereiro na revista Biochimica et Biophysica Acta (BBA) – Molecular Basis of Disease, por pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP e do Institut Pasteur de São Paulo, além de outras instituições. Os resultados abrem caminhos para o desenvolvimento de medicamentos que tragam algum benefício aos pacientes portadores da Síndrome Congênita do Zika Vírus (SCZ) e do TEA.

Para chegar a essa conclusão, a bióloga Cristine Marie Yde Ohki, primeira autora do artigo, realizou ensaios in vitro (em células), in vivo (em animais) e avaliações em uma coorte com quase 160 crianças com SCZ. Elas são acompanhadas desde 2015 por pesquisadores de Recife, em Pernambuco.

O trabalho é a continuação de uma pesquisa publicada em 2015 na revista Nature. Naquela época, o Brasil vivia um surto de infecção pelo vírus da zika. Segundo o Ministério da Saúde, foram contabilizados quase 3 mil nascimentos de crianças com microcefalia.

Em uma corrida mundial para tentar achar respostas ao que acontecia no País, a USP saiu na frente e publicou um artigo mostrando que a infecção pelo vírus da zika causa restrição de crescimento intrauterino em camundongos e provoca morte de células cerebrais por autofagia e apoptose, com sinais de microcefalia e malformações no córtex cerebral que se assemelhavam aos dos bebês recém-nascidos com desenvolvimento incompleto do crânio.

De acordo com o boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, atualizado em 12 de janeiro de 2024, foram registrados 7.292 casos prováveis de zika da semana 1 até a semana 47 de 2023. 

A partir de células-tronco retiradas de dentes de leite (oriundas do Projeto a Fada do Dente) de crianças neurotípicas (denominação utilizada para se referir a indivíduos que não manifestam alterações neurológicas ou do neurodesenvolvimento, como o autismo), as cientistas produziram células do sistema nervoso, os astrócitos, em laboratório, e os infectaram com o vírus da zika. “Quisemos olhar para esse tipo celular porque o astrócito tem um papel fundamental no suporte da homeostase [equilíbrio] do sistema nervoso central e no suporte do neurônio, além de fazer parte da barreira hematoencefálica”, explica Patrícia Beltrão Braga, neurocientista, professora associada do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP e pesquisadora do Institut Pasteur de São Paulo. 

A barreira hematoencefálica é uma estrutura que tem a função de regular o transporte de substâncias entre o sangue e o sistema nervoso central, barrando a entrada de substâncias tóxicas e de hormônios plasmáticos em excesso.

“Vimos que, na infecção, o zika é capaz de se replicar no astrócito e diminuir a capacidade de captação de glutamato”, relata Patrícia Beltrão Braga. O glutamato é o aminoácido mais abundante no sistema nervoso central (SNC) e age como neurotransmissor excitatório, isto é, que desencadeia uma ação no neurônio-alvo. 

O astrócito tem como uma de suas funções captar o excesso desse neurotransmissor para evitar que o cérebro fique com um ambiente tóxico. “Além  dessa diminuição na capacidade de captação do glutamato”, continua Patrícia, “vimos que os astrócitos produziram citocinas [proteínas] inflamatórias, entre elas, a interleucina-6 (IL-6).”   

Em outro ensaio, astrócitos foram infectados diretamente com zika e o meio dessa cultura celular (cultivada para remover o vírus zika, portanto chamada de sobrenadante tratada) foi colocado em contato com neurônios humanos, também produzidos no laboratório a partir das células de polpa dentária. O objetivo era observar se havia algum comprometimento dos neurônios cultivados num ambiente previamente alterado pela presença do zika. “Percebemos que os neurônios também diminuíam a capacidade de realizar sinapses e estavam alterados, e mais, eles se comportavam do mesmo jeito de neurônios de pessoas com autismo.”

Em trabalhos anteriores, o grupo de Patrícia Beltrão Braga já havia constatado que astrócitos de pessoas com autismo eram neuroinflamados e produziam alta quantidade de IL-6. “Por isso, levantamos a possibilidade de essa citocina estar causando uma alteração na sinapse [região de proximidade entre um neurônio e outra célula por onde é transmitido o impulso nervoso], do mesmo jeito que acontecia com o autismo”, explica a pesquisadora. 

Indo para o modelo animal

Diante desses resultados, as cientistas buscaram entender se essas alterações aconteciam também com camundongos. Em colaboração com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) a professora Julia Clarke, que trabalha com modelos animais e zika, infectou os camundongos recém-nascidos e realizou alguns ensaios comportamentais. “Os animais que haviam sido infectados foram acompanhados durante seu crescimento e apresentavam um comportamento alterado, conhecido como comportamento autista-like”, diz Patrícia. Foi visto, ainda, que os cérebros desses filhotes tinham uma alta quantidade de IL-6.  

Na etapa seguinte, Patricia fez contato com pesquisadores do Recife, o mesmo grupo que identificou pela primeira vez o surto de microcefalia em bebês. A neuropediatra Vanessa Van der Linden segue, desde 2015, uma coorte (estudo de longa duração) de bebês que nasceram com a síndrome congênita do zika vírus desde 2015. “Queríamos ver se, entre aquelas crianças, existiam algumas diagnosticadas com TEA”, explica Patricia. “Vimos que a porcentagem de crianças que nasceram com a síndrome congênita do zika vírus e autismo foi de 5,14%, um número alto se considerarmos os dados da OMS, que giram em torno de 1 a 2%”. A Organização Mundial da Saúde estima que, no Brasil, 2 milhões de pessoas possuam algum grau do transtorno.

Além de incluir crianças diagnosticadas com autismo, as pesquisadoras realizaram testes genéticos e, para a surpresa das cientistas, nenhum gene já descrito como relacionado ao transtorno foi encontrado.

Patrícia enfatiza, no entanto, que nem toda mulher infectada pelo zika na gestação terá um filho com TEA. “Essa predisposição vem de uma combinação de fatores, que ainda não sabemos quais são. Pode ser um fator ambiental como o próprio vírus ou a resposta imune da mãe contra a infecção, conhecida como Ativação-Imune Materna (MIA, Maternal Immune Activation), que está causando as alterações no sistema nervoso central e cujo desfecho é o TEA em alguns indivíduos.”

Contribuições

Patrícia participa, de 6 a 9 de março, da 9ª Reunião Bienal de Psiquiatria Molecular em Kona, no Havaí, promovida pela Molecular Psychiatry Association. É um congresso que fala sobre mecanismos envolvidos em doenças psiquiátricas, um assunto que precisa muito ser investigado, dado o aumento de pessoas que apresentam algum tipo de doença psiquiátrica nas ultimas décadas. “Eu espero mostrar que no Brasil também estamos preocupados em produzir ciência de qualidade, que nos ajude a auxiliar a desvendar esses transtornos e nos forneça informações para buscar tratamentos eficientes, melhorando a qualidade de vida dessas pessoas afetadas.”

De acordo com ela esse estudo pode ajudar cientistas a investigar uma possível via de atuação para terapias farmacológicas. “Precisamos pensar em desenvolver uma terapia para modular essa inflamação, ou seja, como fazer essa droga chegar ao cérebro e observar se há um benefício ao paciente.”  

A pesquisadora tem estudado, ao longo dos anos, se infecções virais (não só zika) durante a gestação causam algum dano aos bebês. Ela explica que o autismo é multifatorial (ou seja, envolve questões genéticas e ambientais, como sobrepeso, poluição, infecções etc., que podem ser considerados como fatores) e é muito difícil fazer correlações com aspectos ambientais. 

O grupo vai iniciar, em breve, um estudo para investigar o papel da proteína interleucina 6 no sistema nervoso. “Isso é algo que quero fazer há tempos, e agora teremos um aluno de pós-graduação se debruçando nesse assunto”, finaliza. 

Mais informações: e-mail patriciacbbbraga@usp.br, com Patrícia Beltrão Braga

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Skip to content