Desinformação disfarçada de ciência

Texto de: Herton Escobar
Retirado do Jornal da USP

Todo dia a história se repete: a professora Alicia Kowaltowski abre sua caixa de e-mails e encontra um punhado de mensagens enviadas por revistas das quais ela nunca ouviu falar e assinadas por editores que ela não conhece, convidando-a a publicar os resultados de suas pesquisas em suas nobres páginas. O escopo das revistas, em geral, não tem qualquer relação com a sua área de estudo; mas não importa, são mensagens automatizadas, genéricas, disparadas em massa para cientistas, médicos e engenheiros ao redor do mundo com o único objetivo de recrutar clientes — neste caso, pesquisadores em busca de um lugar para publicar suas pesquisas. “Estamos sendo inundados com esses convites para publicar em revistas muito pouco reputáveis e sem qualquer crivo de qualidade”, diz Kowaltowski, professora titular do Instituto de Química (IQ) da USP e especialista em metabolismo energético — o processo pelo qual as células do nosso corpo produzem e consomem energia.

“Acreditamos que sua pesquisa se encaixa perfeitamente no escopo da nossa revista. Sendo assim, gostaríamos de convidá-la a submeter os achados de seu trabalho para publicação”, diz um dos e-mails. “Tendo em vista seu imenso histórico de pesquisa, aspiramos a publicar seus estimados artigos, de qualquer tipo”, afirma outro. A maioria das mensagens inclui links e prazos para a submissão rápida de trabalhos. Uma delas menciona a taxa de publicação no próprio e-mail: US$ 2.300 por artigo, com desconto de 50% se o texto for enviado até 31 de dezembro.

O problema não é novo, mas cresceu de forma “explosiva” nos últimos anos, diz Kowaltowski. Ela nem perde mais tempo lendo as mensagens e manda tudo para a caixa de spam, mas não adianta: os convites não param de chegar. As revistas podem não ter credibilidade, mas são reais, insistentes, e muitos pesquisadores acabam sendo fisgados pela promessa tentadora de uma publicação rápida, simples e potencialmente mais barata de seus trabalhos, em comparação com o que é tradicionalmente cobrado e exigido pelos periódicos de maior prestígio. É assim que funciona o mercado das chamadas “revistas predatórias”, que dizem aplicar revisão por pares e manter boas práticas editoriais, mas, na verdade, publicam praticamente qualquer coisa mediante pagamento. Submeteu, pagou, publicou — simples assim.

Não existe uma “lista oficial” que permita dizer, exatamente, quantas revistas científicas (também chamadas journals, ou periódicos) há no mundo. As duas principais bibliotecas digitais do ramo, Web of Science e Scopus, têm cerca de 22 mil e 28 mil títulos indexados, respectivamente. Uma plataforma mais ampla, abrangendo todos os idiomas (a Ulrich’s Web), tem cerca de 48 mil. E um levantamento recente feito no Brasil pela equipe do Programa SciELO, com base em dados da plataforma Crossref, identificou quase 70 mil revistas científicas ativas em 2022, publicadas em mais de 150 países. O Brasil aparece em quinto lugar na lista, com cerca de 2.800 revistas; atrás de Indonésia, Estados Unidos, Reino Unido e Rússia.

Os cem maiores publishers de produção científica do mundo — incluindo editoras privadas e acadêmicas — publicam, juntos, mais de 28 mil revistas; e 30 dessas editoras podem ser consideradas empresas predatórias, com 4.517 revistas ativas (16% do total), segundo um levantamento publicado no fim de 2022 por um professor da Universidade de Viena, na revista Journal of Documentation.

Uma consequência disso é que a literatura científica e o debate público são poluídos por um grande número de pesquisas de baixa qualidade, ou até mesmo fraudulentas, recheadas de evidências e conclusões que, na realidade, são pouco confiáveis — o que abre brechas imensas para a produção de desinformação científica. E as revistas predatórias são só uma parte do problema. Muitas das polêmicas envolvendo a segurança de vacinas e a eficácia de supostos “tratamentos precoces” que conturbaram o debate público na pandemia de covid-19, por exemplo, tinham raízes em estudos que foram publicados em revistas legítimas, mesmo contendo falhas éticas ou metodológicas que colocavam em xeque a credibilidade de seus achados.

“Acho que a gente precisa ter uma discussão muito importante sobre que está acontecendo com o processo de revisão por pares e o quanto nós mesmos (cientistas) somos parte do problema”, diz a pesquisadora Lorena Barberia, professora do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e co-coordenadora da Rede de Pesquisa Solidária em Políticas Públicas e Sociedade, que estuda fenômenos políticos e sociais ligados à pandemia de covid-19. 

Impulsionado por uma série de fatores, o mercado editorial de publicações científicas cresceu de forma estrondosa nas últimas décadas, gerando questionamentos sobre a capacidade das editoras e da própria comunidade acadêmica de fazer uma avaliação suficientemente criteriosa de tudo que está sendo publicado. Somente em 2021, para se ter uma ideia, foram publicados mais de 2,5 milhões de artigos científicos (estudos, revisões, análises) no mundo, segundo o último Boletim Anual do Observatório de Ciência, Tecnologia e Inovação (OCTI) do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) — cerca de 7 mil artigos publicados por dia, em média.

Esse número pode ser ainda maior, dependendo da base de dados e dos parâmetros utilizados na análise. Um levantamento recente da Fundação Nacional de Ciências (NSF) dos Estados Unidos, que considera publicações de todas as áreas do conhecimento (incluindo as ciências sociais e as engenharias), contabilizou 2,9 milhões de artigos publicados em 2020, comparado a 1,9 milhão em 2010 — um aumento de 52% em dez anos. Isso tudo, considerando apenas as publicações indexadas em bancos de dados internacionais, sem contar preprints (versões preliminares de artigos, sem revisão por pares) nem estudos publicados em revistas predatórias ou outras publicações não indexadas, que não aparecem nessas plataformas.

Dentro desses quase três milhões de artigos publicados por ano cabe de tudo, desde as pesquisas mais inexpressivas até as descobertas mais revolucionárias; e desde pesquisas conduzidas com o maior rigor científico até estudos que podem ser considerados de validade nula, porque foram mal-conduzidos ou porque contêm dados fabricados ou adulterados que invalidam as suas conclusões.

Em resumo: só porque um estudo foi publicado, não significa, automaticamente, que ele esteja correto, que ele tenha sido produzido de maneira honesta, ou que ele tenha passado por uma revisão criteriosa antes de ser publicado. A análise deve ser feita caso a caso: há bons estudos publicados em revistas de menor prestígio (ou até mesmo predatórias), assim como há estudos ruins (ou até mesmo fraudulentos) que, vira e mexe, conseguem espaço nas revistas mais importantes. O estudo fraudulento que deu origem ao mito de que vacinas poderiam causar autismo, por exemplo, foi publicado em 1998 na revista The Lancet, o periódico médico de maior prestígio no mundo, e levou 12 anos para ser retratado.

Revisão por pares

O procedimento padrão para revisão de um trabalho científico submetido para publicação é o de peer review, ou revisão por pares, em que dois ou três especialistas são designados pelo editor da revista para avaliar a validade daquilo que está sendo descrito pelos autores num manuscrito. Cabe aos revisores, por exemplo, avaliar se a metodologia do trabalho faz sentido, se os experimentos necessários foram feitos de forma satisfatória e se os resultados obtidos dão suporte às conclusões que estão sendo apresentadas. Eles podem requisitar dados adicionais aos autores, sugerir novos experimentos, solicitar esclarecimentos e recomendar ao editor da revista que aceite ou não a publicação do estudo. 

Isso é o que todas as revistas — inclusive as predatórias — dizem fazer; mas se realmente o fazem, e com que nível de rigor, é algo muito variável. “A análise por pares é uma peneira”, compara Kowaltowski. “Existem lugares onde essa peneira é mais fina e outros, onde ela é mais grossa; e você pode se aproveitar do fato de que há lugares com uma peneira mais permissiva para publicar trabalhos de qualidade muito ruim.” 

O grande atrativo das revistas predatórias e de baixa qualidade é que elas praticamente garantem a publicação de um artigo no prazo de algumas semanas, enquanto em uma revista de melhor qualidade o processo de revisão costuma demorar meses, sem garantia de publicação no final. Isso, quando o trabalho não é rejeitado logo de cara pelo editor.

“Na prática tudo acaba sendo publicado; acho que a gente tem que ser honesto a respeito disso”, diz o médico e bioquímico Olavo Amaral, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador da Iniciativa Brasileira de Reprodutibilidade, um projeto que está analisando o grau da replicabilidade da ciência biomédica nacional. “Como você tem infinitas chances de submeter um artigo para revistas cada vez menos criteriosas, em algum momento qualquer coisa vai ser aceita”, completa ele. Segundo Amaral, é preciso “subir o sarrafo” do controle de qualidade na ciência como um todo, não só na etapa final de revisão por pares, mas em todas as fases do processo de produção científica, desde a condução inicial de experimentos no laboratório até a publicação final dos resultados.

A maior parte do aumento no número de artigos publicados no mundo nas últimas décadas ocorreu em países de economias emergentes, segundo os dados da NSF. China, Rússia e Índia, por exemplo, mais do que dobraram a sua produção científica entre 2010 e 2020. O Brasil também registrou crescimento expressivo nesse período, da ordem de 70% — ou até mais, dependendo da base de dados adotada.

Esse aumento no volume de publicações “muitas vezes traz uma redução da capacidade de controlar a qualidade”, diz o físico Carlos Henrique de Brito Cruz, professor e ex-reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que por 15 anos foi diretor científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), e desde o fim de 2020 é vice-presidente sênior de Redes de Pesquisa da Elsevier, uma das maiores editoras científicas do mundo, com sede na Holanda. 

Estudos de baixa qualidade sempre existiram, ainda que em menor número, diz Brito Cruz. Uma diferença fundamental do cenário atual, segundo ele, é que esses artigos ruins, que antes eram simplesmente ignorados pela comunidade científica e acabavam “morrendo em algum lugar da biblioteca” sem maiores consequências, agora podem ser disseminados ampla e rapidamente por qualquer pessoa nas mídias digitais, ganhando visibilidade instantânea. Consequentemente, discussões técnicas que antes ficavam restritas à comunidade acadêmica agora acabam se alastrando sem controle pelas redes sociais e pela imprensa, onde o imediatismo e a superficialidade dos debates raramente permitem fazer uma avaliação verdadeiramente qualificada dos estudos em questão. Um prato cheio para a propagação de desinformação científica. 

Mesmo que esses artigos ruins acabem sendo corrigidos, retratados ou refutados por pesquisas subsequentes, o estrago que podem causar na opinião pública é significativo — como se viu na pandemia. Na verdade, um estudo nem precisa ser ruim para virar fonte de desinformação. No telefone sem fio da comunicação digital, pesquisas bem feitas são frequentemente distorcidas, descaracterizadas ou tiradas de contexto para defender argumentos que não correspondem ao que está descrito no trabalho.

“O que a gente percebe é que as pesquisas científicas podem ser apropriadas, referendadas ou distorcidas para fundamentar teorias conspiratórias e pontos de vistas opostos aos conceitos científicos”, disse Luisa Massarani, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e coordenadora do Instituto Nacional de Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia (INCT-CPCT), ao apresentar dados de suas pesquisas na última reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), realizada em julho deste ano, em Curitiba.

Pesquisadores do instituto estão estudando o fenômeno de weaponization* da ciência nas redes sociais. (*Termo em inglês usado para se referir à apropriação de algo como uma arma; neste caso, o uso malicioso de evidências científicas para questionar a segurança das vacinas.) Em um desses projetos, eles monitoraram a circulação de conteúdos antivacina em seis grupos públicos de WhatsApp no segundo semestre de 2022 e identificaram 37 artigos científicos, publicados em revistas com revisão por pares (incluindo títulos de prestígio, como Science e The Lancet) que foram usados para criticar as vacinas, apesar de todos esses artigos, com a exceção de um, serem favoráveis aos imunizantes.

“Claramente as pessoas desses grupos estão distorcendo, alterando o sentido dos próprios artigos para fazer suas conclusões”, disse Massarani, na mesa da SBPC. Pinçar informações, exacerbar riscos, tirar dados de contexto e descaracterizar as conclusões da pesquisa são algumas das estratégias adotadas. “Não necessariamente os participantes desses grupos são contra a ciência. Pelo contrário, eles estão usando a linguagem científica, estão usando artigos científicos, estão lendo, mas interpretam (o que estão lendo) da maneira que desejam”, completou Massarani, que também integra um grupo de trabalho sobre desinformação científica da Academia Brasileira de Ciências (ABC). O estudo foi submetido a uma revista, mas ainda não está publicado.

“Acho que, no geral, os cientistas conseguem distinguir o que é bom do que é ruim. O problema é como isso passa para a sociedade”, diz o pesquisador Marcelo Yamashita, professor do Instituto de Física Teórica (IFT) e assessor-chefe de Comunicação e Imprensa da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), e diretor científico do Instituto Questão de Ciência (IQC). O problema não é só das redes sociais, ressalta ele, mas também da cobertura jornalística da ciência na imprensa, que muitas vezes peca pelo sensacionalismo e pela falta de uma contextualização correta das pesquisas que estão sendo divulgadas — por exemplo, noticiando resultados de um estudo feito em camundongos como se já fosse “a nova cura do câncer” em seres humanos.

Negacionismo climático

Outro ponto exacerbado pelas mídias digitais, além da popularização instantânea de informações de qualidade duvidosa, é a facilidade conferida a médicos e cientistas negacionistas para propagar desinformação em larga escala, valendo-se de suas credenciais clínicas ou acadêmicas para dar um verniz de legitimidade científica aos seus argumentos.

Assim como publicação não é sinônimo de qualidade científica, diploma não é sinônimo de idoneidade intelectual. “A academia não é diferente das demais comunidades; ela tem seus defeitos e suas qualidades, seus bons e maus profissionais”, diz o físico Paulo Artaxo, professor titular do Instituto de Física (IF) da USP, co-coordenador do Programa Fapesp de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG) e membro do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC), o órgão máximo da ciência climática internacional, vinculado à Organização das Nações Unidas. O negacionismo, segundo ele, é explorado como um negócio por alguns cientistas, que se aproveitam desse “nicho de mercado” para ganhar dinheiro e notoriedade fora dos trâmites acadêmicos.

A ciência do clima é uma vítima corriqueira desse tipo de estratégia, em que uma minoria de pesquisadores utilizam as redes sociais e os meios de comunicação para defender teses ou opiniões desprovidas de mérito científico; frequentemente empregando argumentos simplórios para explicar questões de grande complexidade — por exemplo, argumentando que o CO2 é o “gás da vida” ou que os seres humanos são pequenos demais para influenciar o clima do planeta.

“Provavelmente não há um tópico mais importante para o nosso futuro nesse planeta, e que tenha sofrido tanto com desinformação como as mudanças climáticas”, disse a presidente da Academia Nacional de Ciências (NSF) dos Estados Unidos, Marcia McNutt, numa conferência sobre o tema realizada em maio deste ano, em parceira com a Fundação Nobel.

A constatação de que atividades humanas estão aquecendo a atmosfera e alterando o clima do planeta implica a necessidade de mudanças urgentes nos padrões de consumo e na matriz energética mundial; incluindo uma redução expressiva no uso de combustíveis fósseis (petróleo, carvão e gás natural), que são o ganha-pão da indústria de óleo e gás. Desde o início da década de 1970, quando a Conferência de Estocolmo soou o alarme sobre a existência de uma crise ambiental planetária, portanto, há campanhas de desinformação voltadas à manutenção dos interesses de grandes grupos econômicos que veem seus negócios ameaçados pelo enfrentamento dessa crise, segundo Artaxo. 

“A desinformação sempre foi um problema na questão climática”, diz o professor. Assim como no caso das vacinas, porém, a situação piorou muito nos últimos anos, ressalta Artaxo. Primeiro, pela influência das mídias digitais, que “aumentaram muito a capilaridade e a velocidade de propagação de notícias falsas”; e segundo, pela instrumentalização política do debate por movimentos de extrema direita, principalmente a partir da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, em 2016. “A questão saiu da esfera econômica e entrou para a esfera ideológica”, diz Artaxo. “Isso é muito perigoso, porque não se pode refutar ideologias com argumentos científicos.”

Uma pesquisa conduzida pelo Ipec e divulgada em junho deste ano pelo Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio), em parceria com o Programa de Comunicação Climática da Universidade de Yale, indica que os brasileiros têm uma percepção bem pragmática da crise climática: 94% acreditam que aquecimento global é uma realidade; 74% acreditam que esse aquecimento é causado principalmente pela ação humana; 87% estão convencidos de que ele pode prejudicar muito as gerações futuras; e 81% concordam que o desmatamento da Amazônia é uma ameaça ao clima e ao meio ambiente do planeta.

Isso não impede, porém, que argumentos negacionistas — “validados” por uma minoria de cientistas negacionistas — sejam instrumentalizados para defender interesses políticos e econômicos que vão na direção oposta desse consenso científico e popular. No Brasil, onde a maior parte das emissões de gases do efeito estufa está vinculada ao desmatamento da Amazônia, a negação da crise climática foi recentemente adotada como pauta política por movimentos ligados ao bolsonarismo e a alguns setores do agronegócio nacional.

“A desinformação ambiental é uma das pautas centrais na propaganda política da extrema direita brasileira, servindo de argumento para o desmonte da proteção do meio ambiente e o avanço sistemático de atividades extrativistas no Brasil”, diz o relatório Panorama da Infodemia Socioambiental, produzido no início deste ano pelo Laboratório de Estudos de Internet e Mídias Sociais (NetLab), da UFRJ.

“Historicamente, há grupos econômicos que questionam dados científicos e acadêmicos que vão contra os seus negócios”, disse ao Jornal da USP a coordenadora do NetLab, Marie Santini. A indústria do tabaco e a dos combustíveis fósseis seriam exemplos disso. Esse envolvimento mais recente com movimentos de extrema direita, na avaliação de Santini, se dá por uma questão de “conveniência”, por se tratar de grupo político que está ideologicamente disposto a negar a ciência que não lhes convêm.

“Eles viram que esse era um grupo político que criava um ecossistema de mídia paralelo; então eles falaram: ‘ótimo, vamos criar controvérsia’”, diz a pesquisadora. Nessa tática, se um jornal noticia que o desmatamento na Amazônia está aumentando, basta publicar um texto em outro veículo dizendo o contrário. “Você nem precisa provar que algo está errado, só precisa gerar uma dúvida, dizer que existe uma controvérsia. É aí que a indústria se esconde, porque eles dizem que não estão produzindo desinformação, estão apenas questionando algo”, completa Santini.

“Para o cidadão não especializado, vira uma disputa de narrativas. Parece que existe uma polêmica na academia, quando na verdade não existe”, diz Yamashita, da Unesp. Foi o que a indústria do tabaco fez décadas atrás, segundo ele, financiando cientistas e pesquisas enviesadas para lançar dúvidas sobre a relação entre o cigarro e o câncer.

Segundo a pesquisa do ITS Rio, 17% dos brasileiros acreditam que os cientistas “discordam muito entre eles” sobre a realidade do aquecimento global, e outros 7% acreditam que “a maior parte dos cientistas acha que o aquecimento global não está acontecendo”. Essa falsa polêmica deu as caras recentemente na Cúpula da Amazônia, em Belém, quando o ministro de Minas e Energia do governo Lula, Alexandre Silveira, disse ter estudos que se contrapõem “de forma clara e cristalina” à recomendação do IPCC de cessar imediatamente a abertura de novos poços de petróleo. Questionado por jornalistas sobre quais eram esses estudos, Silveira fez uma referência genérica à Agência Internacional de Energia (IEA) — que, na realidade, está de acordo com o IPCC.

Em busca de soluções

O que fazer, então, para evitar que a ciência seja usada como lenha para alimentar a fogueira da desinformação? As soluções são tão complexas e variadas quanto as causas do problema, segundo as várias fontes consultadas para essa reportagem.

“A luta contra a desinformação exige a utilização de todos os mecanismos de ação disponíveis para as comunidades médica e científica”, diz um artigo sobre o tema publicado por dois pesquisadores da Universidade de Washington em julho deste ano, na revista Nature Medicine. O texto descreve dez medidas, recomendadas pelos autores, para fazer esse combate, incluindo revisões mais criteriosas e retratações mais ágeis de artigos problemáticos, sempre que houver evidências claras de má conduta científica. 

“A avaliação por pares é o melhor sistema que a gente tem, mas ele não é perfeito”, pondera Alicia Kowaltowski, do IQ USP. “O melhor controle de qualidade da ciência, na verdade, é o tempo”, completa ela, referindo-se ao efeito cumulativo da produção de conhecimento, que vai naturalmente separando aquilo que é válido daquilo que não é válido.

O ideal seria que a comunicação da ciência com a sociedade fosse pautada por consensos que levam em conta todo um conjunto de evidências científicas — como faz o IPCC, no caso das mudanças climáticas —, e não por artigos individuais, diz Olavo Amaral, da UFRJ. “Acho que a gente, enquanto comunidade científica, deveria ser capaz de deixar consensos visíveis para o público de forma mais clara”, afirma ele. “Ou a gente gravita para consensos, ou não vai ter solução.”

O problema é que esse processo mais lento de maturação do conhecimento científico está sendo constantemente atropelado pelo imediatismo desenfreado (e politicamente polarizado) do debate público nas mídias digitais; além de vários fatores que se originam na própria comunidade científica. “Tem muito a ver com o sistema de avaliação de pesquisadores e com a comercialização das publicações científicas”, avalia Abel Packer, diretor da SciELO (Scientific Electronic Library Online), uma biblioteca digital de periódicos científicos brasileiros, mantida pela Fapesp. “A desinformação que vem da ciência tem uma característica que ela não é intencional, na grande maioria dos casos. Ela desinforma por uma questão de qualidade”, argumenta ele.

O primeiro ponto levantado por Packer (e outros especialistas) refere-se ao fato de que muitas agências de fomento e instituições de pesquisa ainda avaliam a performance de seus pesquisadores com muita ênfase no número de artigos publicados, e não tanto na qualidade ou na relevância desse artigos; o que cria uma pressão excessiva sobre os cientistas para publicar muito, e publicar rápido — o que pode comprometer a qualidade. O segundo ponto refere-se ao modelo vigente de cobrança pela publicação de artigos científicos, especialmente no formato open access (acesso aberto), do qual algumas editoras se aproveitam para capitalizar em cima desse produtivismo acadêmico. Quanto mais artigos uma revista publica, mais dinheiro ela ganha — o que também pode comprometer a qualidade.

A taxa de publicação (conhecida como APC, ou article processing charge) pode variar de algumas centenas a alguns milhares de dólares nesse modelo de acesso aberto, que hoje é exigido (ou pelo menos incentivado) por grande parte das agências de fomento e instituições de pesquisa no Brasil e no mundo, como forma de garantir que os resultados de pesquisas financiadas com recursos públicos estejam disponíveis gratuitamente para acesso público na internet. 

Os valores cobrados por esse acesso, porém, podem ser exorbitantes para a realidade de muitos pesquisadores, o que tem gerado protestos tanto por parte de autores (que são obrigados a pagar esses valores para publicar seus trabalhos), quanto de editores e revisores (que quase sempre trabalham para as revistas de forma voluntária, sem remuneração). Nos journals de maior prestígio, como Nature e Cell, o preço por artigo pode passar de US$ 10 mil. Mais um problema que precisa ser equacionado nesse quebra-cabeça.

Referências
ESCOBAR, Herton. Desinformação disfarçada de ciência. Jornal da USP, 2023. Disponível em: https://jornal.usp.br/atualidades/desinformacao-disfarcada-de-ciencia/

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