Autor do livro “Ainda Estou Aqui” fez palestra na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, no dia 24 passado
Escrito por: Ricardo Thomé
Retirado de: Jornal da USP
Fazer USP em tempos de ditadura, sentir-se acolhido como pessoa com deficiência nos anos 1980, aprender a unir ficção e realidade em obras literárias, entender-se um bom escritor. Esses foram alguns dos temas abordados pelo escritor, dramaturgo e jornalista Marcelo Rubens Paiva na palestra Ainda Estou Aqui, realizada na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP na manhã desta terça-feira passada, dia 24. Em cerca de uma hora e meia, diante de um auditório lotado, Paiva lembrou com alegria seu período de estudante na ECA, interagiu com o público e respondeu a algumas perguntas.
Paiva relembrou seu início na ECA, em 1982. Ele contou que, uma vez que seu ingresso na USP aconteceu pouco tempo depois do acidente que o deixou tetraplégico, em 1979, a relação com os colegas era diferente da que ele tinha na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde estudou Engenharia Agrícola. “Na Unicamp, eu era o músico, maluco, cabeludo, ativista, irmão da Veroca (Vera Paiva, professora do Instituto de Psicologia da USP) que sofreu um acidente. Quando cheguei à ECA, ninguém me conhecia. Eu era um cadeirante em meio a pessoas do ‘vale encantado do Rio Pinheiros’.”
Apesar disso, o escritor considera que foi bem acolhido na ECA, já que seus novos amigos não tinham a sua imagem pré-acidente como referência para comparações, por exemplo. “Naquela época, a acessibilidade não era uma preocupação da Universidade. E eu conhecia a ECA, respeitava a ECA e entendia que, por ser eu o diferente, era eu que deveria me adaptar.” Ele lembrou que, após realizar alguns procedimentos para tentar recuperar parte dos movimentos, chegou enfaixado para a aula, o que criou um boato de que ele estava assim porque teria caído da escada. “Isso gerou uma mobilização dos meus colegas na sala da diretoria para que tivéssemos aulas em salas que fossem acessíveis para mim.” Paiva se formou em Rádio e TV pela ECA em 1988.
Indagado a respeito de qual foi atividade favorita na USP, Paiva citou a convivência com colegas de outros anos e cursos, além de relembrar com entusiasmo suas idas ao Centro de Práticas Esportivas da USP (Cepeusp) para aproveitar as piscinas.
Mudando o foco para o engajamento político na Universidade, Paiva ressaltou que, na época da ditadura, havia dois mundos diferentes: um dentro da Universidade e outro fora dela. “Fora, quase nada era permitido, e havia censura. Dentro, podíamos fazer várias coisas que eram proibidas.” Ele citou como exemplos a leitura de livros e a exibição de filmes proibidos pela ditadura. “A Universidade era um espaço de liberdade, ainda mais numa faculdade de comunicação”, completou. Ele considerou as primeiras greves na USP, ainda nos anos 1970, como marcos do movimento estudantil.
O escritor destacou, também, a intensa presença dos militares em todas as áreas da sociedade brasileira na época. “O diretor da ECA era capitão de mar e guerra, o presidente da Confederação Brasileira de Desportos — a CBD, hoje CBF — era militar, o treinador da Seleção Brasileira de Futebol era capitão… A ditadura começou como um movimento civil-militar e foi tomando uma cor verde-oliva”, comentou, comparando o período da ditadura militar com a forma que o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro foi tomando no Brasil, entre 2019 e 2022. “Em ambos os casos, havia militares em todas as frentes, exceto na economia.”
Memória e construção literária
A seguir, o escritor falou um pouco sobre as diferenças e semelhanças entre o livro Ainda Estou Aqui (2015) e sua adaptação cinematográfica homônima, de 2024, por Walter Salles, que recebeu o prêmio de Melhor Filme Internacional no Oscar deste ano. “No início, eu tinha muito pudor para colocar minhas experiências no papel. Aí eu vi o exemplo de outras obras que usavam da autoficção para contar histórias reais e então revisitei essas experiências, tanto em Ainda Estou Aqui como em O Novo Agora”, disse, referindo-se ao seu mais recente livro, lançado neste ano.
Paiva não vê, assim, espaço para dissociar a realidade da ficção por completo. “Walter Salles fez Ainda Estou Aqui porque frequentou aquela casa. A nossa casa era a casa colorida onde ele não morava e a nossa família era a família que ele gostaria de ter. E, de repente, ele vê tudo aquilo fechado, enquanto nós tínhamos sumido.” O escritor lembrou que o pai de Salles, Walther Moreira Salles, foi ministro da Fazenda do governo João Goulart (1961-1964). A família Salles foi exilada e, quando retornou, já nos anos 1970, Walter Salles conheceu a família Paiva.
No que diz respeito ao contato que teve com Walter Salles para a produção do filme, o escritor disse que tinha como referência a forma como o cinema argentino sabia trabalhar a temática da ditadura militar argentina (1976-1983) sem cair em idealismos. “E aqui isso acontece muito, há muitos erros. Eu queria que fosse um filme sobre uma família, que foi vítima, assim como qualquer outra poderia ter sido”, explicou. Ele ressaltou que a obra cinematográfica foi feita a partir das memórias de Walter Salles sob a perspectiva de Eunice Paiva (1929-2018), sua mãe, o que fez, por exemplo, com que o filme não tivesse cenas de tortura — como tem no livro. “Não tem tortura porque a Eunice não viu tortura. E porque eu não queria que tivesse.” Paiva considera que cenas de tortura no cinema em filmes como esse são uma “compra barata que afasta o público ao tentar atraí-lo por meio do choque”.
Sobre o papel de Eunice Paiva, interpretada no filme por Fernanda Torres — que venceu o Globo de Ouro de melhor atriz pelo trabalho —, o escritor comentou que o filme é feito a partir do olhar da mãe, de forma que os olhos dela são a câmera. “E tem o olhar, ao longo do filme, e o não olhar, no final”, acrescentou, em referência às cenas finais, que mostram uma Eunice já debilitada pelo Alzheimer. Ele lembrou também que o livro e o filme o fizeram questionar o porquê de seu pai, Rubens Paiva (1929-1971), ser sempre colocado como mártir da ditadura, quando sua mãe foi quem viveu todos aqueles anos, além de todo o processo de redemocratização.
O incentivo de Caio Graco Prado
Indagado pelo público a respeito do papel exercido pelo editor Caio Graco Prado (1931-1992), da Editora Brasiliense, para que ele se tornasse escritor, Paiva lembrou uma entrevista que concedeu ao programa Ponto de Virada, da TV Cultura, em 2023. Na ocasião, foi perguntado sobre o que o fez começar a escrever e, na sua resposta, não falou nem sobre seu acidente nem sobre o desaparecimento do pai, mas sobre a vez em que Caio Graco Prado o chamou para escrever um livro sobre aquilo que ele tinha vivido, Feliz Ano Velho, em 1982.
Paiva contou que, mesmo antes de sua primeira publicação, já escrevia para jornais estudantis e para fanzines punks, mas que o incentivo de Graco foi crucial para que ele colocasse suas próprias histórias no papel. Feliz Ano Velho compôs a coleção Cantadas Literárias, da Editora brasiliense. Essa coleção era dedicada a produções de escritores marginais e foi responsável por trazer à cena autores inéditos, numa época em que era arriscado escrever e editar livros. “Como dizia Woody Allen, ‘é preciso ter esforço, talento e sorte’. E eu tive muita sorte”, afirmou.
Realizada no Auditório Freitas Nobre do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA, a palestra Ainda Estou Aqui, de Marcelo Rubens Paiva, foi uma iniciativa de professores e alunos do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da ECA.
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